Terça-feira, Janeiro 14

Se o escritor Valério Romão nos deu Dez Razões Para Aspirar a Ser Gatoquero dar-vos alguns argumentos para aspirar a ser cão e depois vocês decidirem. Eu já decidi.

Olho para o meu cão deitado aos pés da secretária. O bandido solta um pequeno suspiro de satisfação durante o sono. Está cansado, coitado, ainda que não tenha feito mais do que comer e brincar desde que combinado. Eu que trabalho, que a ração é das boas e é cara, e são as minhas patas que têm de sacar a carteira.

Logo de manhã, quando o soltei debaixo de uma chuva pesada de Verão que não lembra a ninguém, o sacana fartou-se de correr na relva, imune às intempéries, com aquele proteção impermeável que faz inveja a qualquer bípede de sombrinha em punho. O meu cão corre sob a chuva com a língua divertida e posso jurar que está alegre, mesmo que não sorria na horizontal como nós; o riso dos cães vê-se na cauda hirta bamboleando como uma bandeira ao sabor do vento.

Argumento número um: os cães são mais alegres do que nós. Isto é inequívoco. E toda a gente sabe que a alegria é o bem mais precioso que há, logo a seguir a um salário mínimo justo e digno que dê para pagar a renda e viver sem passar misérias.

Argumento número dois: os cães livres comem sem ter consciência do peso. Muitos deles comem tudo o que passam pela frente, até peúgas, se vierem aromatizados pelos pés dos humanos com quem vive. Os cães estão sempre prontos para farejar o rabo alheio, sobretudo de desconhecidos, e isto revela o quão despojados são de regras sociais, não têm o mínimo pudor, divertem-se a incomodar o próximo — “farejarás o próximo como a ti mesmo”, Julgo que deve estar nos dez mandamentos dos cães, que estes cumprem sem esforço e revelando uma clara satisfação. Este é o argumento número três.

Como quarta razão, quero apelar à forma como se distinguir ao cativar a atenção de todas as pessoas. Entram numa sala e acabou-se, o protagonismo é deles. Ou são idolatrados por crianças e adultos por serem fofinhos, ou então temidos, caso tenham um ar antipático de uma raça que intimida, e mesmo assim voltam a ser fofinhos se mostrarem que afinal têm um focinho mau mas não mordem. Se colocarmos um cão em cena num espetáculo de teatro, os atores, por melhor que seja o seu desempenho, desaparecem. Porque a presença do cão é autêntica e os atores são uma mera fabricação, e as pessoas vão ao teatro à procura da verdade quando fogem dela no cenário da vida.

Um último motivo e depois vocês decidirão: o cão sabe ladrar, ganir, rosnar e não fala. São filhos primários bastante mais claros do que a linguagem verbal. Tem um vocabulário limitado e toda a gente entende. Não é o sonho de qualquer pessoa?

Há muitas outras razões, mas espero que sejam suficientes para vocês convencerem. Ou não, pode continuar a aspirar ser gatos. Só acho que vocês não são confiáveis.

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