Quarta-feira, Outubro 16

Além da herança genética associada a características físicas, à propensão para o desenvolvimento de determinadas patologias e até mesmo a vantagens ou desvantagens evolutivas, existem segredos de família e vivências traumáticas que são passados de geração em geração e que, de acordo com a psicanalista Galit Atlas, criam “lacunas entre o que queremos e o que podemos ter”.

 

Em ‘Herança Emocional’, obra editada pela Alma dos Livros, a terapeuta fez uso das histórias que, ao longo dos anos, foi acumulando, assim como da sua experiência e de décadas de investigação para ‘destapar’ o véu do trauma familiar que, por vezes, só será encarado pela “próxima geração”.

Ainda assim, e conforme confessou ao Notícias ao Minuto, “o trauma é transmitido através das nossas mentes e dos nossos corpos, mas também o são a resiliência e a cura”.

Para isso, contudo, é necessário “caminhar em direção” às mágoas e aos “fantasmas” do passado, ao invés de procurarmos fugir à dor. Isto porque, de acordo com investigações recentes no campo da epigenética, “o nosso trabalho emocional tem um efeito profundo naquilo que nós, os nossos filhos e os nossos netos nos vamos tornar”.

A nossa herança emocional molda quem somos: afeta a nossa saúde mental e física, cria lacunas entre o que queremos e o que podemos ter, e assombra-nos como fantasmas

O que é o trauma intergeracional e como é que se manifesta na nossa vida quotidiana?

A transmissão intergeracional do trauma é a ideia de que as experiências dos nossos pais e avós são transpostas, deixando um rasto nas nossas mentes e nas das gerações futuras. Em ‘Herança Emocional’ descrevo como as pessoas que amamos e que nos criaram vivem dentro de nós; sentimos a sua dor emocional, sonhamos com as suas memórias, por vezes sabemos o que não nos foi explicitamente transmitido, e estas coisas têm impacto nas nossas vidas de formas que nem sempre compreendemos.

A nossa herança emocional molda quem somos: afeta a nossa saúde mental e física, cria lacunas entre o que queremos e o que podemos ter, e assombra-nos como fantasmas. Na nossa vida quotidiana, respondemos não só ao que os nossos pais fizeram ou nos disseram, mas também ao que são e aos traumas que viveram e que nunca nos contaram.

Considera que, hoje em dia, as pessoas estão mais dispostas a partilhar os seus sentimentos e a curar os seus traumas, ou ainda existe um estigma associado à saúde mental?

Sim. Nos últimos anos, e especialmente desde a pandemia de Covid-19, há muito mais atenção à saúde mental e muito menos estigma. Consequentemente, as pessoas sentem-se mais livres para procurar ajuda e para partilhar as suas dificuldades com os outros.

[Protegemo-nos] de ver a realidade como ela é para evitar a dor. Mas, na verdade, ao fazê-lo, escarificamos o nosso verdadeiro eu

A cultura desempenha um papel importante na forma como as pessoas lidam com os seus sentimentos. É possível ultrapassar as questões culturais enraizadas na sociedade e curarmo-nos?

Esta é uma questão muito profunda e sobre a qual penso muito, porque o meu livro foi publicado em 27 línguas diferentes e, em cada lugar, as pessoas focam-se num aspeto ligeiramente diferente, dependendo da sua cultura.

Acredito que é muito difícil ultrapassar coisas que estão enraizadas numa cultura. Mas, hoje em dia, as culturas têm impacto umas nas outras e podemos ver a influência e a mudança, especialmente no que diz respeito à saúde mental, que passou de um tema proibido e associado à vergonha para um tema que faz parte do diálogo em quase todo o mundo.

A positividade tóxica está ‘na moda’ neste momento e as pessoas tendem a esconder os seus sentimentos para conforto dos outros. De que forma é que isto prejudica não só a pessoa que está a sofrer, mas também as pessoas que a rodeiam? E qual o impacto na sensibilização para a saúde mental?

A positividade tóxica baseia-se em mecanismos de defesa como a negação, a repressão e a idealização, e no medo de emoções negativas e dolorosas. Isto significa que nos protegemos de ver a realidade como ela é para evitar a dor. Mas, na verdade, ao fazê-lo, escarificamos o nosso verdadeiro eu.

Deixamo-nos isolar, tanto a nós como aos outros, sem apoio quando mais precisamos dele: em momentos de angústia, tristeza ou transtorno. A intimidade refere-se a conhecer e a ser conhecido, e quando reprimimos os nossos sentimentos e nos obrigamos a ter apenas sentimentos positivos, não podemos ser verdadeiramente íntimos.

Para obter ajuda, é necessário ser capaz de tolerar a dor de se aproximar do trauma. Por vezes, é preciso tempo para que isso seja possível e, por vezes, só a próxima geração é que fará esse trabalho

Todos nós, num momento ou noutro, sentiremos o luto e a perda de um ente querido. Porque é que a morte continua a ser um tabu? Porque é que não falamos mais sobre a única coisa que todos temos em comum, além do nascimento?

A morte é o maior enigma da vida. Embora a morte seja a única coisa certa no futuro de todos, não sabemos quando ou como vai acontecer, não temos controlo sobre ela e, no fundo, todos temos medo da morte. Todos vivemos com o conhecimento de que um dia, no futuro, vamos morrer, e defendemo-nos contra isso usando diferentes estratégias. Mas temos de nos lembrar que, ao contrário do incesto, por exemplo, a morte não é tabu em todas as culturas. É interessante refletir sobre o aspeto cultural desse tabu.

Tal como o luto, a terapia pode ser entendida como uma ‘escavação’ do eu. Como menciona no livro, é cansativo explorar o trauma e encontrar uma cura. É por isso que algumas pessoas resistem a procurar ajuda?

Sim, é cansativo e assustador ir ao encontro da dor. No livro, descrevo como a capacidade de amar, de investir na vida, de criar e realizar os nossos sonhos está sempre em diálogo com a nossa capacidade de procurar verdades emocionais e de tolerar a dor. As nossas jornadas para a cura variam, mas cada uma começa com a decisão de procurar e, em vez de nos afastarmos das mágoas do passado, caminhar em direção a elas. É um passo corajoso e não é para toda a gente. Para obter ajuda, é necessário ser capaz de tolerar a dor de se aproximar do trauma. Por vezes, é preciso tempo para que isso seja possível e, por vezes, só a próxima geração é que fará esse trabalho.


© Alma dos Livros  

Como é que podemos quebrar o ciclo do trauma intergeracional, uma vez que, de acordo com a ciência, este altera literalmente o nosso ADN?

Durante anos, fomos habituados a aceitar a herança genética como estando destinada e acreditávamos que os fatores ambientais tinham pouco ou nenhum efeito no ADN. Atualmente, o campo da epigenética oferece-nos um outro quadro para compreender como a natureza e a educação se misturam e como respondemos ao ambiente a nível molecular. Este campo sublinha que os genes têm uma ‘memória’ que pode ser transmitida de uma geração para a seguinte.

As implicações para esta nova investigação sobre epigenética significam que sabemos que o trauma pode ser transmitido à geração seguinte, mas também que o trabalho psicológico pode alterar e modificar os efeitos biológicos desse trauma. A nossa esperança reside na compreensão de que o nosso trabalho emocional tem um efeito profundo naquilo que nós, os nossos filhos e os nossos netos nos vamos tornar. O trauma é transmitido através das nossas mentes e dos nossos corpos, mas também o são a resiliência e a cura.

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