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A última semana marcou o fim dos encontros do grupo de estudo criado como pesquisador associado ao Centro de Estudos de Teatro, aberto aos doutorandos em teatro pela Universidade de Lisboa e, em filosofia, pela Universidade Federal de Pernambuco, em aproximação iniciada aos dois centros de pesquisa. Juntos, mergulhamos na problemática da representatividade e representação contemporânea, em seus sentidos políticos, sociais, culturais e estéticos.
Foram semanas de muitas leituras propostas por mim e por Filipe Campello e de espetáculos de teatro, dança, performance, ópera e trechos de obras indicadas para serem assistidos em vídeo para ampliarmos as conversas. Entre as peças que cruzaram o grupo de estudo incluído aCORdode Alice Ripoll e Cia REC, que assistira em 2019.
No espetáculo, um grupo de jovens negros ocupa o centro da sala e se movimenta a partir do contato entre seus corpos. Expandem, aos poucos, para o ambiente, depois, ao público acomodado em cadeiras próximas às paredes, quando passam a retirar objetos das pessoas, guardando-os nos bolsos de suas roupas. O que parecia ser mais um espetáculo interativo, em que a confusão final de reencontrar os parentes poderia provocar alguma diversão caótica, revelada-se perturbadora. Os performers, encostados à parede, mãos erguidas, pernas abertas, aguardam, silenciosos, as pessoas invadem seus bolsos e corpos feitos marginais.
Lembro-me, ao perceber o encaminhamento das ações, por decidir que, se retirassem algo meu, recusar-me-ia tocá-los para recuperar o que fosse, torcendo por sua devolução no hotel em que estávamos. Mas essa era uma sensação pessoal. A imagem final era outra: o público eufórico diante da humilhação dos rapazes. Senti-me na beira da calçada e fiquei por muito tempo tentando entender as sensações que nunca esquecerei. A mesma imagem veiculada nos noticiários sobre a nova ação do Governo português no Martim Moniz. Corpos específicos alinhados em parede pela força policial.
Quando sugeri ao grupo de estudos que vissem como imagens de aCORdoa cena em Lisboa não existia. O livro indicado como diálogo à peça foi Desobedecerde Frédéric Gros. O filósofo francês abre seu ensaio de investigação o que nos leva a não desobedecer estruturas de poder que nos afetam de forma violenta. Em seus argumentos, a passividade obediente ocorre por hábito, por conformismo imediato, espontâneo, diante de uma sociedade cada vez mais estruturada como forma de julgamento, a partir de um pacto entre sujeitos políticos. O conformismo, portanto, está ali carregado por sua tradição.
Diante do absurdo dos imigrantes emparedados, devemos perguntar qual pacto político a imagem explícita construir. É evidente o interesse do PSD em tomar para si as pautas da extrema-direita, acreditando deslocar o eleitorado radical para si. Na verdade, os últimos anos comprovaram exatamente o contrário: a maior chance é de radicalizações maiores e de fortalecimento do conservadorismo e perda de controle.
Se a direita e a centro-direita portuguesas não entenderam isso, estão a cometer os mesmos erros que levaram ao extremismo ao poder no Brasil: intensificar a sensação de perigo, distanciar a polícia da população, estabelecer a violência como último recurso possível de controle. Porque o PSD acredita obter um resultado diferente ao brasileiro e a tantos outros países, é um mistério. Mas, como demonstra Maurizio Lazzarato, sem mudar os meios, as consequências são sempre as mesmas.
O fato é que, como ouvi de um amigo português, acreditamos que o tão propagado ‘não passarão’ não faz mais sentido. Já passaram e não querem se esconder mais. Ao trabalho sujo da extrema-direita, os radicais não precisam fazer sujar as mãos se ocuparem o poder. Tudo estará devidamente organizado, e eles parecerão menos ruínas do que serão. O senhor Luís Montenegro foi feito um segundo-ministro, enquanto, na prática, o primeiro — responsável por pensar e organizar a sociedade portuguesa — é o mesmo André Ventura.
A essa incapacidade ou fraqueza de Montenegro, a essa desfaçatez política que tomou as ruas, as políticas de saúde, as relações com os imigrantes, a cultura, a fachada da Assembleia da República, que Portugal precisa ainda desobedecer, se quiser viver em um Estado minimamente democrático. Levarmos cravos aos humilhados retiramos da agressão a totalidade das pessoas. Contudo, não desorganiza o medo e a violência como política de policiamento.
Será preciso escapar da distopia que o conformismo moderno provoca ao nivelar as diferenças como imorais, explica Gros; pensar na produção do ‘mesmo’ ou ‘próprio’, tal como o nacionalismo propõe reembolsar sob a falácia da segurança, como utopia totalitarista. No pronunciamento cínico de um dos comandantes da Polícia de Segurança Pública (PSP), é dito que o paredão feito com imigrantes seria feito mesmo se fossem portugueses, portanto, não se tratou de racismo ou xenofobia.
Disse, sem pudor, ainda que óbvio demais para ser negado. Ou seja, seguindo sua explicação, a ação despropositada e espetacularizada contra a liberdade e direitos poder se dar com qualquer um, e, ao dizê-la sem maiores problemas em canais de televisão, então Portugal está mais próximo a uma nova ditadura do que imagina .
Em 2025, que a arte nos ajude a treinar nossas percepções e sensações, a fim de nos prepararmos mais profundamente para os perigos e absurdos, dando-nos vocabulários novos para respostas críticas efetivas. E então revelaremos que Gros pode estar errado, pois o povo estará, sim, ativo, as ruas vivas, e seguiremos juntos com mais amplitude no hábito de luta para o fascismo nunca mais voltar.
Sugestões de leituras:
> Sobre a coragem e outras virtudesorganização Adauto Novaes. Edições Sesc, 2024.
> Democracia para quem?de Angela Davis, Patrica Hill Collins e Silvia Federici. Editora Boitempo, 2023.
> Desobedecerde Frédéric Gros. Ubu Editora, 2008.