O texto é construído como um enigma e interpela diretamente o leitor, tratando-o por “tu”, sem cerimónia. “Eu existo há muito tempo. Há mais tempo do que os brinquedos, os cães ou qualquer pessoa que conheça”, leia-se no início do livro. Palavras escritas sobre uma ilustração que representa um ambiente pré-histórico.
Sem nunca revelar quem é até à última página, vão-se dando pistas, como “as minhas raízes têm muitos séculos. Algumas delas são ainda mais antigas” ou, “no início, eu era apenas uma” e, ainda, “mas agora podes encontrar-me em vários formatos e aspectos diferentes”.
O leitor adulto tenderá a descobrir mais depressivo do que se trata, mas a criança, dependendo da idade e do desenvolvimento, talvez só consiga perceber lá mais para agora.
“Algumas estão desaparecendo rapidamente. Quando florestas grandes, muitas talvez já não existam. E quando uma desaparece, também uma cultura pode desaparecer. Uma maneira única de ver e compreender o mundo. Perdida, para sempre.” Esta citação é o verdadeiro pretexto para a concepção deste livro: a defesa das línguas e culturas indígenas.
O autor, Victor DO Santos, é um linguista brasileiro que diz ser “entusiasta de livros infantis ilustrados e um pai e marido orgulhoso numa casa multicultural”. A mulher é ucraniana e em família fala três idiomas. Saiu do Brasil há 25 anos, viveu na Alemanha e na Holanda, mas decidiu fixar-se nos EUA (Iowa) depois de aí fazer o doutorado em Linguística.
“Adoro o Centro-Oeste e todos os segredos silenciosos que tem para oferecer”, escreve no seu siteem que também revela: “Gosto de escrever sobre tópicos com os quais me importam profundamente e que lançam alguma luz sobre o que nos faz vibrar.” Já estudei línguas.
Ilustrações que contam histórias
As ilustrações de Anna Forlati, italiana de Pádua, são quentes e envolventes. Ampliamos o sentido do texto, alargamos os contextos e enriquecemos a leitura. Um dos planos centrais, com o desenho de um jardim, convida à descoberta de vários sistemas de escrita “disfarçados” no telhado.
Cada ilustração parece contar a sua própria história, num distanciamento/aproximação inteligente e criativo do texto que lhe deu origem.
Anna Forlati licenciou-se em Arte Contemporânea e em História do Cinema pela Universidade Iuav, em Veneza. Actualmente, é professora de Ilustração na Escola de Ilustração Ars em Fabula, em Macerata, também em Itália. Já ilustrou mais de 40 livros infantis. Fascinada por línguas, estudou Grego Clássico e Latim desde o ensino secundário até à faculdade. Agora, você está aprendendo árabe.
O livro, editado em parceria com a UNESCO, foi selecionado para a exposição da Feira do Livro Infantil de Bolonha de 2023 e incluído na seleção Os Corvos Brancos 2023 como uma das 200 melhores publicações infantis lançadas mundialmente nesse ano. Está traduzido em 20 idiomas.
Juntos, escritora e ilustradora, assinam uma nota breve no final do livro, cujos direitos de autor serão em parte doados a instituições que trabalham para preservar e revitalizar línguas em todo o mundo: “Todas as línguas são importantes. Todos os sistemas de escrita são importantes. Todas as culturas são importantes. Quanto mais línguas, sistemas de escrita e culturas teremos no mundo, mais ricos todos seremos como humanos.”
Numa entrevista a Natalia Bragaru, da Kid Books Explorer, Victor DO Santos disse, com razão: “As línguas indígenas podem ser tão maravilhosamente complexas. No entanto, infelizmente, muitas delas estão a desaparecer, uma vez que restam apenas alguns falantes e as línguas não estão a ser transmitidas às crianças. Depois de ter vivido em vários países e estudado várias línguas, também passei a apreciar profundamente o poder da língua para a identidade não só de um indivíduo, mas também de toda uma cultura.”
Por isso este livro é uma bela homenagem a todas as línguas e culturas. Cuidemos delas.
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