Uma troca de horários na piscina fez-nos coincidir no balneário com um grupo de mulheres que praticam hidroginástica. A avaliar pelos nomes, corpos e discursos, andam pelos 60 e muitos e os 70 e poucos anos. A mais velha será a que tem 78, di-lo em voz alta: “Respeitinho pelos meus 78, ainda vos posso dar um responso”, ameaça, divertida, as companheiras de banhos.
A contrariedade inicial de quem procura sossego na natação livre à hora em que há menos gente e muitas pistas vazias deu lugar à observação e escuta daquelas mulheres que decidiram não parar.
“Se o meu marido me visse nestes preparos, chegava-me a roupa ao pêlo”, diz uma. “O meu também. Isso era certo”, acrescenta outra. E todos são riem numa gargalhada amarga, mas ainda assim uma gargalhada.
Os “preparos” eram despir-se sem pudor frente umas às outras e compararem barrigas. “A da Adelaide diminuiu, a minha cresceu. É dos baldes e das pataniscas da Rosa.”
A memória traz-nos regras de educação: “Não se ouvem as conversas dos outros.” Falamos alto, justificamos-nos intimamente, não estamos a escutar atrás da porta. Tudo isto poderá ser material literário, argumentamos em nossa defesa.
“Se o meu António imaginasse que eu andava dentro de água a dançar com homens por perto, lá ia procurar um cinto para me malhar.” Silêncio. Até os jovens que do outro lado dos duques tiravam selfies ao espelho ficaram estáticos.
“A primeira coisa que fiz quando ele morreu foi deitar fora todos os cintos que havia lá em casa. Agora, já posso dançar, dentro e fora de água. Ele que rebole na sepultura”, diz. Assim, a segundo.
“O meu já deve ter dado não sei quantas voltas”, afirma outra. “Pintei o cabelo, tirei a carta e nunca mais parei. Vou para todo o lado sem pedir licença a ninguém.” Bem-disposta, conclui: “E já posso dormir até tarde.”
Recordamos outra mulher, noutro contexto, a que ouvimos dizer que gostava mais de tomar banho de manhã, mas que tinha de o fazer à noite: “Não vá o meu homem querer servir-se de mim.” Éramos jovens, aquilo ficou.
O cortejo segue para a piscina. As mais novas, ou as menos velhas, dêem o braço às outras para que não escorreguem no chão molhado. A música já começou e o professor, jovem, cumprimenta-as uma a uma, amável. Há quem comece logo a dançar, homens também.
Mexem-se com facilidade, cantam, riem-se e abraçam-se depois de ganhar um desafio simples com duas equipes e duas bolas. Dentro de água, não tem peso nem idade. Até o passado parecia ter-se afogado.
Damos por nós a pensar que o melhor que lhes aconteceu foi terem ficado viúvas. Imaginamos os espíritos dos maridos mortos por ali um casal furioso e impotente ou envergonhado e arrependido. Tarde demais.
Passamos a organizar nossas idas à natação em função das aulas de hidroginástica para chegarmos quando elas terminarem. Voltámos a escutar desabafos, dir-se-iam exorcismos terapêuticos de quem partilha um passado triste e um presente feliz. Pelo menos, livre e em movimento.
“Uma vez, a sopa ficou salgada. Atirou-a contra mim, mas atrapalhou-se e foi ele que se queimou. Eu a tratar-lhe uma mão e a receber chapadas com a outra”, conta a que faz pataniscas e organiza saques. “Era mesmo burra, eu”, recrimina-se. “Não eras só tu”, responde aquela que chama “a nossa algarvia”. Já como vamos nos identificar.
Há outra a que se refere como “a nossa cabo-verdiana” e que pergunta, enquanto abana a cabeça: “Como é que vocês se sujeitaram a isso?” As respostas vêm em voz baixa e com um encolher de ombros. “O que é que podíamos fazer?”, “não ganhávamos”, “tínhamos filhos”, “íamos para onde?”, “parecia mal deixarmos os maridos”. Silêncio.
A que tirou a carta e pintou o cabelo diz, assertiva: “Acabou a conversa. Onde é que vamos almoçar hoje?” A alegria volta e logo fazem planos para uma caminhada e um lanche antes das Festas.
As mais ágeis ajudam as outras com os atacadores das sapatilhas e os colchetes dos soutiens. Há uma que penteia as amigas e lhes pedem cabelos secos. A Algarvia tem de se ir embora, vai almoçar com os netos.
“Até amanhã, meninas”, despede-se. Volta atrás. “Sabem uma coisa? Devíamos ter casado umas com as outras.” Tudo se riem, até nós.